Nizam

Navegando pela internet, quem já não viu um "Deus Vult" acompanhado de um "Remove Kebab" vindo de algum perfil típico com algo que remetesse à ideia de cruzada, geralmente com a simbologia dos cavaleiros templários?

Mas como tudo que é projeção política moderna disfarçada de história, esta imagem de cavaleiros templários buscando sempre "remover/exterminar'' muçulmanos para "salvar a Europa'' não é nada mais de que uma construção folclórica alimentada atualmente via redes sociais.

A ordem dos Cavaleiros Templários, fundada em 1119, 20 anos após o exército da Primeira Cruzada tomar Jerusalém, tinha como seu objetivo inicial a proteção dos peregrinos cristãos contra assaltos de bandidos nas diversas rotas que os conduziam ao Santo Sepulcro e demais locais sagrados cristãos na Terra Santa. A participação de seus monges guerreiros nos combates do exército do Reino de Jerusalém contra os muitos potentados muçulmanos do Levante e cercanias acontecia, mas especificamente não refletia uma atitude antagonista de seus membros a muçulmanos como um todo. Templários ao longo dos anos mais conviviam com muçulmanos de que os combatiam.

Exemplos dessa boa convivência de templários e sarracenos nas fontes primárias abundam. Um destes relatos é o do famoso cronista árabe Usama ibn Munqidh que por volta de 1175 escreveu:

"Quando estava em Jerusalém, costumava ir à mesquita Al-Aqsa, a Cúpula da Rochedo, ao lado da qual há um pequeno oratório que os francos converteram em igreja. Sempre que entrava nela, que estava em poder dos Templários que eram meus amigos, eles colocavam o pequeno oratório à minha disposição, para que eu pudesse rezar lá as minhas orações. Um dia, tinha entrado e dito 'Allahu Akbar' ("Deus é Maior") e preparava-me para me levantar quando um franco se atirou a mim pelas costas, levantou-me e virou-me para que eu ficasse voltado para oriente. 'É assim que se reza!', disse. Alguns Templários intervieram imediatamente, agarraram o homem e afastaram-no do meu caminho. Mas assim que o deixaram ele agarrou-me de novo, obrigou-me a virar para o oriente e repetiu que era assim que se rezava. De novo os Templários intervieram e levaram-no. Pediram-me desculpa e explicaram: 'É um estrangeiro que só chegou hoje e nunca viu ninguém orar para qualquer outra direção que não fosse para oriente'. 'Terminei as minhas preces', respondi e saí estupefato com o fanático."

Em outra passagem, Usama vai além, e conta que até mesmo uma cozinheira muçulmana era empregada por seus amigos cruzados para lhe fazer comida halal sem porco ou vinho, como uma forma de respeito pelas regras islâmicas.

Numerosos tratados e acordos políticos de paz entre os reis cristãos e muçulmanos no contexto das Cruzadas eram firmados pelos templários, porque, como escreveu o cronista árabe Aboul Faradj, eles eram "considerados como homens puros, incapazes de faltar à sua palavra". Por via de regra, monges cristãos são descritos no Alcorão (5:82) como: "Constatarás que aqueles que estão mais próximos do afeto dos fiéis (muçulmanos) são os que dizem: 'Somos cristãos!', porque dentre eles há sacerdotes e monges que não se ensoberbecem de coisa alguma."

Entretanto, toda esta amizade templária pelos infiéis não era sempre bem vista, como denuncia uma crônica cristã contemporânea; “Sei de boa fonte que vários sultões foram recebidos de bom grado e com grande pompa na Ordem, e que os próprios Templários lhes permitiram celebrar as suas superstições com a invocação de Maomé.''

Do lado muçulmano, a suspeita dessa ''amizade'' com cruzados também pode ser vista nos relatos do contemporâneo Ibn Jubayr (1145-1217):

"Nós nos mudamos de Tibnin (fortaleza cruzada no Sul do Líbano) – que Deus a destrua – ao amanhecer de segunda-feira. Nosso caminho era através de fazendas contínuas e assentamentos ordenados, cujos habitantes eram todos muçulmanos, vivendo confortavelmente com os francos (cruzados)… Eles entregam metade de suas colheitas aos francos na época da colheita, e pagam também uma taxa de um dinar e cinco qirat para cada pessoa. Para além disso não são incomodados, exceto por um imposto leve sobre o fruto de suas árvores. As casas e todos os seus efeitos são deixados à sua completa posse. Todas as cidades costeiras ocupadas pelos francos são administradas dessa maneira, seus distritos rurais, as aldeias e fazendas pertencem aos muçulmanos. Mas seus corações foram seduzidos, pois, eles observam o quão diferente deles em facilidade e conforto estão seus irmãos nas regiões muçulmanas sob seus governadores (muçulmanos). Este é um dos infortúnios que afligem os muçulmanos. A comunidade muçulmana lamenta a injustiça do proprietário de sua própria fé e aplaude a conduta de seu oponente e inimigo, o senhorio franco, e está acostumada à justiça dele."

Com o passar do tempo, o agravante das denunciações devido a relativas boas relações entre templários e muçulmanos ficava ainda maior, pois cavaleiros renomados chegavam até mesmo a abandonar a fé católica pelo Islã como foi o caso de Robert de St. Albans.

Robert era um cavaleiro templário inglês que se tornou muçulmano em 1185 e liderou o exército de Saladino contra os cruzados em Jerusalém. Robert acabou se casando com a sobrinha do sultão curdo. A conversão do templário ao Islã causou consternação significativa entre os cruzados, e provocou má vontade em relação aos Cavaleiros Templários em geral, cada vez mais vistos sob suspeita.

Décadas mais tarde, quando a ordem foi dissolvida e acusada de heresia pelo Vaticano em 1312, com muitos de seus membros queimados na fogueira por motivos mais financeiros e políticos que religiosos, os documentos chegam a mencionar suas simpatias islâmicas e convivência com os sarracenos como crimes explícitos.

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